quinta-feira, 24 de maio de 2012

Reconhecimento dos direitos dos animais

Foto de Daniel Lorenço


Segundo o professor Daniel Lourenço, advogado e mestre em “Direito, Estado e Cidadania”, com especialização em Direito Ambiental, os animais são tratados como objetos e não se dá a devida importância a seus interesses mais fundamentais.

Em entrevista à ANDA, ele afirma categoricamente que “houve períodos históricos em que os próprios seres humanos foram tidos como propriedade, como coisa, e tratados basicamente da mesma forma com que hoje tratamos os animais”; salienta, ainda, que “os centros de pesquisa dentro das universidades baseiam-se no mito segundo o qual a pesquisa biomédica só é possível com experiências em animais”, o que defende ser algo bastante questionável.

Nesta entrevista, Daniel Lourenço analisa alguns pontos relacionados ao direito dos animais, conferindo ênfase na recém-aprovada “Lei Arouca”, que estabelece regras acerca do uso dos animais como cobaias na experimentação científica.

Ele fala também sobre o seu recém-lançado livro Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas.


ANDA – Como surgiu o seu interesse na temática dos direitos dos animais?


Daniel Lourenço – Sempre fui muito ligado à natureza e aos animais.
Muito embora acredite que uma pessoa não necessite ser uma “amante dos animais” para comprometer-se com o seu tratamento ético, no meu caso isso ocorreu de maneira simultânea.
Meu primeiro contato com a ética animal propriamente dita ocorreu, ainda bastante jovem, com a leitura da obra Libertação Animal, de Peter Singer.
Hoje, por razões de cunho acadêmico, não compartilho da visão utilitarista do Professor Singer, mas seu livro teve um inegável impacto no questionamento direto de determinados paradigmas em minha vida.
Mais tarde, durante a faculdade de Direito, me filiei ao Animal Legal Defense Fund – ALDF e tive acesso à revista Animal Law Review, uma das publicações mais prestigiadas nos EUA a respeito do tema dos direitos dos animais.
A partir daí o meu entendimento da questão animal efetivamente se modificou e passei a alimentar o projeto pessoal de escrever algo sobre o assunto, já que a literatura jurídica específica sobre o tema em língua portuguesa é bastante deficitária.
Temos excelentes obras, como as da Professora Sônia Felipe, do Promotor de Justiça Laerte Levai, entre outras, mas ainda assim, contadas nos dedos.
Esse meu projeto foi ganhando corpo quando realizei o mestrado, onde pude desenvolver a dissertação “Direito, Alteridade e Especismo”, mais tarde transformada no livro Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, 566p.).



ANDA – Quais foram os principais obstáculos na publicação do livro?


Daniel Lourenço – Tal como afirma o pensador e economista inglês John Stuart Mill (1806-1873), todos os movimentos sociais se caracterizam essencialmente por percorrerem uma fase inicial de ridículo, uma fase posterior de debate e uma fase final de aprovação ou desaprovação.
A meu juízo, infelizmente a temática animal ainda se encontra na fronteira do ridículo com o debate.
O meio jurídico, em particular, é, de modo geral, bastante conservador e refratário à discussão do tema. Nesse sentido, enfrentei algumas dificuldades na realização da dissertação.
No próprio mestrado houve problemas com alguns professores que expressamente rejeitaram a orientação do meu trabalho.
Felizmente, encontrei apoio no Professor Ricardo Lobo Torres, que, desde o início, me incentivou e permitiu o livre fluxo de idéias.
Mais tarde, quando procurava editoras jurídicas para encaminhamento da publicação da tese, ouvi seguidas recusas de diversas editoras.
Isso demonstra que o meio ainda é bastante reticente à absorção de novas idéias.
Falta oxigênio no meio jurídico.


ANDA – Quais são os principais tópicos desenvolvidos na sua obra?


Daniel Lourenço – O primeiro capítulo traz uma abordagem eminentemente histórica, a que denominei de “O Homem e o Mundo Natural: as Premissas Culturais do Especismo”.
Nele procuro delinear a maneira com a qual foi sendo construída, ao longo do tempo, a indevida colocação do homem como centro de toda sorte de preocupação, inclusive de natureza ética.
Nessa linha, o segundo capítulo, intitulado “Entre o Formalismo e a Realidade Ética”, traz as principais correntes de pensamento, indiretas e diretas, que contestam esse paradigma antropocêntrico.
No terceiro capítulo trato da “Linguagem dos Direitos” propriamente dita, onde trago a linha de pensamento dos jusfilósofos que pretendem alicerçar os direitos dos animais como categoria fundadora de direitos subjetivos fundamentais para os animais não-humanos.
É neste segmento da obra que trago uma colaboração pessoal que consiste na utilização da teoria dos entes despersonalizados para tratar o tema.


ANDA – Depois de muitos anos correndo no Congresso, o projeto que estabelece os critérios de uso de animais como cobaias foi aprovado e agora aguarda sanção do presidente Lula.
Qual a sua avaliação sobre este projeto?


Daniel Lourenço – É triste constatar que todo esse tempo se mostrou insuficiente para que se percebesse que o PL n. 1.154/95 representa um retrocesso e não um avanço relativamente ao tema da utilização de animais na pesquisa científica.
No campo ideológico, como partidário dos direitos dos animais, me oponho frontalmente a qualquer tipo de norma que corrobore a exploração e a instrumentalização dos animais.
As chamadas leis de “bem-estar animal”, entre as quais indubitavelmente se inclui o PL supramencionado (comumente designado como “Lei Arouca”), trabalham com o equivocado paradigma do animal como coisa, como propriedade.
Por essa razão, o âmbito de eficácia desse tipo de lei é, em realidade, bastante reduzido no que se refere à real salvaguarda dos interesses mais básicos dos seres envolvidos nas atividades humanas que essas leis pretendem regulamentar.
A analogia com a escravidão humana é bastante ilustrativa para compreendermos melhor esse ponto.
Como é sabido, houve períodos históricos em que os próprios seres humanos foram tidos como propriedade, como coisa, e tratados basicamente da mesma forma com que hoje tratamos os animais. Com o passar do tempo, principalmente a partir do século XVII, houve leis de “bem-estar” para os escravos, tal como hoje temos leis de “bem-estar” para os animais.
Existiram normas, por exemplo, que limitavam ou reduziam a quantidade de açoites diários.
É claro que, do ponto de vista meramente quantitativo, isso representava uma melhoria na condição do escravo, pois é sempre melhor receber menos castigo do que mais.
Todavia, do ponto de vista qualitativo, esse tipo de norma não retirava o escravo da odiosa condição de objeto.
O mesmo ocorre com os animais.
As leis de proteção animal eventualmente podem acarretar melhorias pontuais, quando muito, mas não retiram a condição do animal como coisa.
O PL 1.145/95, nesse sentido, não traz um questionamento sobre a moralidade em si de utilizarmos animais como objetos de pesquisa, mas apenas regulamenta essa atividade, anestesiando a consciência do cidadão não atento às raízes do problema.


ANDA – Que novas perspectivas podemos ter em relação ao direito dos animais no Brasil?

Daniel Lourenço – As perspectivas a curto e médio prazos não são boas, até porque o Brasil, para não fugir à regra dos demais países, não reconhece os animais como autênticos sujeitos de direitos. Os animais, portanto, não titularizam direitos subjetivos e continuam indevidamente atados ao dogma da coisificação: são tidos como “bens móveis” pela legislação civil e “recursos naturais” pelas leis ambientais.
Essa visão instrumental revela o caráter descartável da vida não-humana.
Vale a pena novamente frisar que há uma distinção clara entre a ideologia do protecionismo animal e dos direitos dos animais propriamente ditos.
Como mencionado, as ditas leis de proteção animal apenas regulamentam o uso dos animais, colocando eventuais salvaguardas no intuito de minimizar o paradoxal “sofrimento desnecessário”, mas jamais questionam a moralidade dessas mesmas instituições e condutas.
A teoria dos direitos dos animais, por sua vez, tendo por base o fato de que boa parte dos animais é senciente, postula o rompimento da idéia de que deles possamos fazer uso como meios para nossos fins, incompatível, portanto, com o paradigma do animal como propriedade.
Como afirma Tom Regan, não queremos jaulas vazias ou maiores: não queremos jaulas.
Nessa linha, não lutamos pela regulamentação e sim pela abolição da utilização de animais.
Muito embora o desafio seja gigantesco, vemos que, paulatinamente, o tema dos direitos dos animais vem sendo discutido com maior seriedade no meio acadêmico e, com isso, vem ganhando legitimidade.
Exemplo disso é o crescente envolvimento de pessoas sérias e renomadas no estudo do tema, e a existência, por exemplo, de uma Revista Brasileira de Direito Animal, bem como a realização, em outubro passado, do I Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal na Universidade Federal da Bahia.
Não vejo como as leis de bem-estar possam efetivamente “evoluir”, a não ser que deixem de regulamentar e passem a abolir o uso de animais.
O paradigma do modelo animal pareceu viável nos séculos XVIII e XIX, talvez porque os conhecimentos fisiológicos e anatômicos ainda fossem bastante incipientes.
Hoje, em pleno século XXI, essas idéias são claramente comodistas e obsoletas.


ANDA – Como o senhor avalia a forma como os animais são usados dentro das universidades e centros de pesquisa?


Daniel Lourenço – Boa parte dos centros de pesquisa das universidades baseia-se no mito segundo o qual a pesquisa biomédica só é possível com experiências em animais.
Isso é uma falácia e, mesmo que não fosse, a pesquisa não-consentida deveria ser rejeitada com base nos mesmos argumentos éticos que utilizamos para vedá-la quando feita em humanos.
De fato, a pesquisa científica que faz uso de animais convive com um paradoxo insolúvel, qual seja: ou os animais são iguais a nós em todos os aspectos biológicos relevantes e não devemos levar adiante a pesquisa não-consentida pelas mesmas razões pelas quais não a conduzimos em seres humanos, ou os animais são diferentes de nós nesses mesmos aspectos e, por esse motivo, pela impossibilidade real de extrapolação e derivação de resultados, a pesquisa seria igualmente injustificável do ponto de vista técnico.
Mesmo sob uma ótica meramente reformista (bem-estar), as universidades deveriam priorizar o uso de recursos substitutivos, garantir a objeção de consciência e vedar absolutamente a repetição de experimentos com resultados conhecidos.
Penso, no entanto, que o real enfrentamento do tema nos leva a concluir, tanto do ponto de vista técnico como ético, pela total rejeição do modelo animal.


ANDA – Hoje milhões de cobaias são usadas para pesquisas científicas. Como o senhor avalia as leis de controle de uso de cobaias no mundo?


Daniel Lourenço – As leis de controle de uso de cobaias no mundo tendem a adotar a filosofia dos 3R’s (replacement, reduction e refinement). Sob esse prisma, são tidos como métodos alternativos todos os que se propõem a reduzir o número de animais utilizados para a execução de um determinado experimento, diminuir o sofrimento animal por meio do refinamento da técnica e da completa substituição do uso de animais por outros métodos. A meu juízo, somente a última espécie se coaduna com o que dispõe o § 1º do art. 32 da Lei n. 9.605/98. No entanto, contaminados por uma filosofia cartesiana, o experimentador é comumente dessensibilizado ante o sofrimento de seus pacientes.
A dor e o sofrimento em sentido amplo são manifestações primariamente orgânicas, que se revelam igualmente relevantes tanto em humanos quanto em não humanos.
Não há qualquer razão do ponto de vista científico ou moral para que consideremos esses estados negativos menos importantes quando sentidos por animais não-humanos.
É somente por um especismo ordinário, tão simplório quanto o racismo mais descarado, que vedamos aos animais o acesso a essa esfera mínima de garantias e de igual consideração de interesses.


ANDA – Como o senhor trata do tema utilizando a “Teoria dos Entes Despersonalizados”?


Daniel Lourenço – A obra Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008), fruto de minhas pesquisas por ocasião da realização do mestrado em Direito, pretende discutir criticamente o paradigma do animal como propriedade.
Nesse sentido, procuro fundamentar a colocação do animal como sujeito de direito.
Para tanto, temos várias alternativas.
A maior parte da escassa doutrina jurídica abolicionista no país tenta fazê-lo utilizando-se da categoria de “pessoa”.
Embora não discorde fundamentalmente de que animais possam eventualmente vir a ser categorizados como “pessoas” no âmbito do Direito, acredito que essa opção revela uma difícil implementação de ordem prática, pois necessitaríamos de uma modificação legislativa significativa.
Além disso, certamente esbarraríamos no nosso “orgulho de espécie”, por meio do qual é sempre mais complexo o processo de inclusão de não-humanos dentro de uma mesma categoria em que figuram os humanos, que, nesse sentido, sofreriam uma “ameaça conceitual” direta.
Procurando fugir desses problemas, desenvolvo e procuro fundamentar criativamente uma distinção conceitual entre “pessoa” e “sujeito de direito”, afirmando que há sujeitos de direitos personificados (pessoas propriamente ditas) e sujeitos de direitos despersonificados ou despersonalizados (que titularizam direitos subjetivos específicos, mas que não são pessoas propriamente ditas).
Entre os sujeitos de direito personificados, teríamos os seres humanos (pessoas humanas) e não-humanos (pessoas jurídicas), o mesmo acontecendo com os não-personificados.
Teríamos, portanto, entes despersonalizados humanos (embrião; art. 2º do CC) e não-humanos (entes do art. 12 do CPC, por exemplo, e os animais).
 Essa solução me parece menos traumática e mais palatável para ser implementada no mundo real.


ANDA – Além do uso de animais como cobaia, como o senhor vê os sistemas de criação e abate de animais para consumo hoje no país?

Daniel Lourenço – Tal como mencionado, as leis que regulamentam o também paradoxal “abate humanitário” trabalham sob o paradigma do animal como instrumento, como coisa.
Para os fins de proteção do interesse desses animais de continuarem a viver de acordo com o seu ciclo biológico natural, de nada adianta que a sua morte seja pretensamente indolor, ou que até o abate seja tratado do modo mais “humanitário” possível.
Para eles o fim será sempre o mesmo: a morte.
Se defendo que animais têm o direito à vida, me oponho a que sejam utilizados para o abate, não importa o quão tecnicamente refinado seja esse abate.
Acho eticamente complicado justificarmos o abate de animais para alimentação sob todos os prismas, principalmente quando temos alternativas alimentares plenamente viáveis nesse sentido.
Comemos animais por prazer e hábito, não por necessidade.


ANDA – Gostaria de refazer uma pergunta que o senhor fez a si mesmo no texto “A ‘Textura Aberta’ da Linguagem e o Conceito Jurídico de Animal”.
Na linguagem do Direito, quais os seres vivos que poderiam ser abarcados no conceito de animal?
Como são feitas as diferenciações entre os animais dentro do debate sobre ética animal e direito animal?


Daniel Lourenço – No artigo que você menciona, procurei fazer uma abordagem sobre o conceito jurídico de animal.
Percebemos nitidamente que esse conceito sofre diversas distorções à mercê dos nossos próprios interesses.
É, de fato, bastante curioso, por exemplo, verificar que, de acordo com nossa legislação, o homem mesmo não é tido como uma espécie animal, pois o art. 17 do Decreto n. 24.645/34 define animal como “todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos”.
Repare que há um retorno romântico, quase que mítico, à mentalidade pré-darwiniana do homem como semidivindade, colocado absolutamente apartado no ápice da “Grande Cadeia do Ser”, segundo Lovejoy.
Nesse sentido, a meu juízo, há uma supervalorização do problema de se definir onde se situa a linha biológica a partir da qual os animais titularizariam direitos ou não.
Muito embora admita que exista, de fato, uma zona de incerteza onde não sabemos precisar se determinadas espécies fariam jus a essa inclusão como autênticos sujeitos de direitos (exemplo: insetos e microorganismos), há uma zona de certeza bastante significativa que inclui a vasta e larga maioria dos animais que exploramos diariamente.
Pessoalmente, diante da incerteza científica, faço prevalecer o princípio da precaução, ou seja, concedo o benefício da dúvida aos animais.


http://www.anda.jor.br/28/12/2008/reconhecimento-dos-direitos-dos-animais

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