Rafael Bán Jacobsen é físico, professor, escritor, poeta e músico, além de atuante defensor dos direitos animais.
Nasceu em Porto Alegre, no dia 21 de maio de 1981. Vegetariano ativista, é fundador e atual coordenador da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) em Porto Alegre, proferindo palestras sobre o tema em encontros nacionais (site www.svbpoa.org).
Recebeu o prêmio “Ativista Vegetariano do Ano” conferido pela Sociedade Vegetariana Brasileira por ocasião do 1º Congresso Vegetariano Brasileiro e Latino-Americano (2006).
Participa, ainda, do Grupo pela Abolição do Especismo (GAE) de Porto Alegre (site: www.gaepoa.org), entidade que, além de promover o estudo crítico de textos filosóficos sobre o abolicionismo animal, realiza periodicamente manifestos de grande repercussão no Rio Grande do Sul.
ANDA: Físico, professor, pianista, escritor e ativista pelos direitos animais; suas credenciais são muitas, e, em cada área na qual você atua, maestria e singularidade são evidenciadas.
Sim, somos fãs de seu trabalho e queremos saber: a par das especialidades já listadas, em que mais você se destaca?
Rafael: Antes de mais nada, agradeço muito pelos exageros, digo, pelos elogios (risos).
Não tenho certeza se, de fato, me destaco em todas essas atividades às quais me dedico, mas, certamente, eu as desempenho por gosto e vocação.
Mas pensando em alguma outra habilidade que eu tenha, bem, as pessoas costumam dizer que eu cozinho bem, embora eu não cozinhe com frequência por pura falta de paciência.
Além disso, dizem que eu teria talento para ser humorista.
Aliás, o meu arremedo de stand up comedy com situações vividas por vegetarianos no dia a dia já de tornou famoso por aí.
Também dizem que sou bom para fazer imitações.
Desde o colégio, sempre imitei todos os meus professores, mas também faço imitações de celebridades, desde as mais óbvias, tipo o Lula e o Sílvio Santos, até outras mais insuspeitas, como a Marília Gabriela.
ANDA: Autor do premiadíssimo romance “Solenar” e do novo “Uma Leve Simetria” e de uma série de contos e crônicas publicados em veículos diversos, seu apreço pela boa literatura é claro.
Quando e como se deu a descoberta e o desenvolvimento de seu gosto por ler e escrever?
Rafael: A paixão pelas letras surgiu muito cedo em mim.
Cresci cercado de livros e em uma família de leitores e contadores de história – coisa que, aliás, é bastante judaica.
Talvez a única coisa que tantas mulheres e homens judeus tenham tido em comum através dos tempos até nossos dias, desde os filósofos medievais até os anarquistas do século XX, é o respeito pelos livros, pela inteligência, pela educação e pela cultura.
Assim, minha aproximação com as letras foi quase natural, e, tão logo aprendi a ler e escrever, já ousei inventar e registrar minhas próprias histórias.
Desde então, jamais deixei de buscar refúgio nas letras.
Apesar dessas constatações, é difícil precisar o que leva alguém a se tornar um escritor.
Tive a sorte (ou azar) de nascer assim.
Desde que me entendo por gente, criei mundos na minha imaginação, e, quando aprendi a ler e a escrever, as muitas leituras às quais me entreguei acabaram fomentando a transposição dessas minhas fantasias para o papel, sob a forma da escrita.
Mas concordo bastante com a escritora Marilene Felinto que diz: “Escritores são pessoas que, num determinado momento da vida, sofreram algum tipo de trauma que os levou a ter essa compulsão pela literatura, pela criação de um mundo paralelo ao mundo real.
Preferia não ter que escrever, mas é como se eu não tivesse direito a essa opção.
Escrever é um atrapalho.”
ANDA: Conte-nos, também, como e quando surgiu o veganismo em sua vida.
Foi tranquila a adesão a essa “filosofia” de vida?
Rafael: Tornei-me vegetariano da noite para o dia, sem refletir muito e sem influência direta de alguma coisa externa.
Durante minha infância, sempre ajudei minha mãe a recolher e tratar animais de rua, ficava revoltado com parentes que iam pescar, tinha terror ao ver cavalos mal tratados pela cidade, mas não estendia essa compaixão e, mais do que isso, esse respeito aos animais que me serviam de alimento.
Um certo almoço, diante de um pedaço de frango, um mal-estar súbito me tomou, um sentimento de culpa terrível.
Não consegui terminar aquela refeição e, daquele dia em diante, deixei de comer carne. Foi praticamente uma “revelação”.
Isso foi há doze anos.
Na época, eu não conhecia nada sobre vegetarianismo, o que até foi muito bom, porque, assim, eu também não tinha os preconceitos que as pessoas em geral têm em relação ao tema (tanto que nem me intitulava “vegetariano”, eu era apenas “alguém que não come carne”).
Por isso, ao contrário de muitos que fazem a transição para o vegetarianismo, eu não tive grandes preocupações, não tinha medo de ficar fraco ou doente, não pensava que me alimentar sem carne seria mais caro ou trabalhoso, nada disso.
Foi, portanto, uma mudança bem tranquila.
Nos meses que se seguiram a essa “revelação”, como disse, eu me dediquei a tentar racionalizar aquele sentimento que me levara a abdicar da carne e comecei a buscar, na internet, receitas sem carne, informações sobre criação e abate de animais, e logo descobri toda a crueldade e, mais importante, toda a falta de ética que está envolvida na obtenção de produtos de origem animal como um todo.
Não havia, então, a enorme quantidade de sites e grupos de discussão que hoje temos; mesmo assim, tudo que vi e li foi mais do que suficiente para mim.
Poucas semanas depois de largar a carne, abandonei os demais produtos de origem animal e abracei o veganismo.
Hoje, o veganismo é uma das coisas mais importantes da minha vida, é a minha forma de me posicionar no mundo, e é algo tão forte que, acredite se quiser, não consigo ter lembranças nítidas de mim mesmo comendo animais (exceto por aquele último frango); é como se fosse tudo um filme velho e borrado sobre algo que é puramente ficcional e jamais aconteceu na realidade.
Tendo respondido a pergunta, faço uma observação quanto a essa designação que, frequentemente, usamos para o veganismo: uma “filosofia” de vida.
Concordo, sim, que se trata de uma filosofia entre aspas.
Recentemente, tive a alegria de hospedar em minha casa o historiador vegano Bruno Müller, meu amigo pessoal, e debatemos, entre vários temas, o veganismo enquanto “filosofia” de vida.
Motivado por essa discussão, ele escreveu um texto que, penso, vale a pena citar para fomentar um debate sobre essa forma que tanto empregamos para definir o veganismo:
O veganismo não é uma opção de vida.
É um imperativo ético.
Um dever.
Se é um dever, é uma regra.
Uma regra obrigatória.
E obrigatória para todos.
Senão, seria uma regra arbitrária e, consequentemente, sem sentido. (…)
Fazer do veganismo uma “opção individual” torna a prática ainda mais nobre: enquanto todos os outros se entregam aos prazeres da carne, nós nos abstemos estoicamente.
Por consciência.
É uma “filosofia de vida”: que chique!
É uma bela forma de angariar simpatia, eu admito.
Mas não é honesto.
ANDA: Sendo coordenador da SVB – Porto Alegre, você vem acompanhando a popularização do veganismo e o desenvolvimento do ativismo local em primeira mão.
Como têm seus conterrâneos – conhecidos por sua alimentação rica em defuntos – reagido às tentativas da SVB-Porto Alegre de promover a educação e a conscientização, por uma vida mais ética?
Rafael: Porto Alegre é um lugar de opostos, por tradição.
Aqui, ou você é gremista ou colorado fanático; ou você é petista (eleitor do PT) ou ferrenho anti-petista; ou você é maragato ou é chimango.
É uma coisa quase histórica essa bipolarização.
Por isso, na mesma medida em que o churrasco come solto em Porto Alegre, ela é também uma das cidades em que o movimento vegetariano é mais forte e articulado.
Já dizia o bom e velho Isaac Newton: a toda ação corresponde uma reação de igual intensidade, mas de sentido contrário.
Em Porto Alegre, por exemplo, há mais de 20 restaurantes vegetarianos, número comparável apenas a São Paulo.
Com trabalho da SVB na cidade, que começou aqui em 2005, tenho reparado que o interesse pelo vegetarianismo é crescente, cada vez mais pessoas aderem ao vegetarianismo e ao veganismo (principalmente jovens).
Também está se firmando um ativismo da causa.
Nunca antes ocorreram tantas palestras, seminários, encontros e manifestos relacionados ao vegetarianismo (por exemplo: quando antes alguém tinha visto encenações com bandejas de carne humana e churrasquinho de gente na entrada da Expointer, uma das maiores feiras agropecuárias das Américas, ou pessoas de preto, no Dia de Finados, chorando em torno de uma lápide com fotos de animais, colocada em frente à maior churrascaria da cidade, ao som da Marcha Fúnebre?).
De 2005 para cá, surgiu não apenas a SVB – Porto Alegre, mas também outras importantíssimas ONGs voltadas ao veganismo e aos direitos animais, como o Grupo pela Abolição do Especismo (GAE – Poa) e a Vanguarda Abolicionista, todas desempenhando um excelente trabalho.
Ou seja: apesar dessa cultura de exploração animal que temos aqui no Rio Grande do Sul, as reações positivas têm superado as expectativas.
Porém, quando atravesso, na hora do almoço, a praça de alimentação lotada de um shopping e não consigo ver um prato sequer sem um pedaço de bicho em cima, é impossível deixar de sentir um certo desânimo.
Penso que lutar pela causa é quase um trabalho de enxergar gelo.
Mas, mesmo que isso fosse verdade, não seria razão suficiente para deixar de lutar por algo em que acredito.
ANDA: Grupos e ONGs brasileiras – como VEDDAS, SVB, Gato Negro e mais – têm proporcionado à população muitos congressos, oficinas, encontros e todo tipo de eventos nos últimos anos.
Estes promovem educação e confraternização a todos que buscam um mundo mais ético, e você, que ativamente participou de vários desses eventos, está qualificado a criticar/elogiar/sugerir melhorias aos mesmos. Manda:
Rafael: De fato, participei, seja como ouvinte ou palestrante ou organizador, de todos os grandes eventos atuais ligados à causa, como os Congressos Vegetarianos Brasileiros, o Encontro Nacional de Direitos Animais e o Primeiro Congresso de Bioética e Direito Animal, além de muitos eventos de menor porte em todo o Brasil.
Considerando-se que a causa do veganismo e dos direitos animais no Brasil ainda é engatinhante, posso dizer que a qualidade e a quantidade desses eventos está muito boa, eu diria mesmo surpreendente para uma país que a recém começa a conhecer a existência dessas questões.
A única questão que realmente me preocupa é a precoce fragmentação do movimento, coisa que se reflete diretamente nesses eventos.
Certas ONGs não têm afinidade com outras, alguns expoentes da causa divergem de outros, e, assim, acaba havendo um boicote interno a essas iniciativas.
É comum ver todos os membros de um dado grupo ignorarem solenemente um evento promovido por outro, ver um palestrante recusar um convite para participar de um seminário pelo fato de que algum “desafeto” estará também presente, e assim vai.
Tudo isso me aborrece bastante.
Eu me orgulho muito (e, sim, me gabo disso) de ter livre trânsito e bom diálogo com todas as ONGs que defendem a causa dos direitos animais e do veganismo no Brasil.
Mas, infelizmente, percebo que sou exceção.
ANDA: Como está a agenda da SVB-Porto Alegre para 2010? Muitos projetos e eventos por vir?
Rafael: A agenda desse ano está especialmente movimentada, porque Porto Alegre sediará a terceira edição do Congresso Vegetariano Brasileiro, de 23 a 26 de setembro de 2010.
Depois do sucesso das duas edições anteriores, é uma grande responsabilidade conduzir os trabalhos para a concretização da terceira.
E, de fato, estamos trabalhando muito para fazer um belo evento.
É verdade que Porto Alegre não tem as lindas praias de Floripa (que foi sede do Congresso Mundial), tampouco possui as 300 opções veganas de São Paulo e também não chega a ser o quarto município mais rico do Brasil, como Belo Horizonte.
Mas não é por isso que Porto Alegre não vai ser a número um em participantes do congresso!
Em breve, colocaremos o site do evento no ar e abriremos as inscrições – e esperamos que vegetarianos e simpatizantes de todo o Brasil se inscrevam em massa.
Isso porque o Congresso Vegetariano Brasileiro é o grande evento do vegetarianismo no nosso país, uma grande reunião com variadas palestras, oficinas, demonstrações culinárias e apresentações artísticas, constituindo, assim, uma oportunidade única de confraternização e troca de ideias. Imperdível mesmo!
ANDA: Você é judeu.
Praticante?
Conte-nos sobre a relação de sua fé com o veganismo.
Rafael: Sim, sou um judeu praticante no sentido de que costumo frequentar a sinagoga pelo menos para a cerimônia de cabalat shabat, gosto de observar as festividades e estudar os textos fundamentais do judaísmo.
E gosto, especialmente, de estudar as relações entre judaísmo e veganismo.
Eu, particularmente, enxergo muitas conexões!
Na Torá, a proibição de ingerir sangue, por exemplo, é enfática.
Os judeus costumam contornar essa proibição lavando e se salgando a carne em um intrincado processo.
Mas não importa o quanto se lave e se salgue um pedaço de carne, o sangue sempre estará ali.
Assim, a proibição de ingerir sangue, se levada a sério, implicaria o vegetarianismo.
Continuando nessa linha, devemos lembrar que, na Torá, existe o mandamento de não causar tsaar baalei chayim (sofrimento aos animais), e me parece suficientemente óbvio que a criação e o abate de animais são, sim, fonte de imenso sofrimento para os animais.
Mas existe ainda, na Torá, um elemento ainda mais fundamental que, na minha visão, parece apontar para o veganismo.
Se entre todos os mandamentos, leis, rituais e tradições do judaísmo tivéssemos de eleger o que há de mais importante, é certo que as opiniões convergiriam para os Dez Mandamentos, os quais, por sua vez, segundo os sábios, podem ser sintetizados num único princípio básico e essencial, tão essencial que é chamado “regra de ouro”: “Ama o próximo como a ti mesmo.”
A maioria dos rabinos interpretam o “próximo” aqui referido como “teu próximo em mandamento”, isto é, os que estão sujeito à Aliança de Abraão (patriarca dos judeus) com Deus, o que, trocando em miúdos, seriam os judeus, excluindo-se, portanto, os gentios.
Uma minoria de comentaristas rabínicos, no entanto, considera a regra de ouro aplicável a todos homens e mulheres.
Essa interpretação ganha força se tomarmos a regra de ouro em sua forma negativa, conforme formulada pelo grande sábio Hilel, no fim do século I a.C.: “O que te é odioso, não o faças a teu próximo.”
Sendo assim, se valesse a regra de ouro apenas entre judeus, estariam abertos precedentes absurdos como, por exemplo, a possibilidade de um judeu roubar ou matar um gentio sem violar aquele que é o núcleo essencial da mensagem de Deus, o que é absurdo.
Logo, o princípio de amor e não-ofensa ao próximo deve se estender, no mínimo, a todos homens e mulheres.
Interessante notar a tendência que os homens têm de buscar aplicar princípios éticos apenas àqueles próximos realmente mais próximos, aqueles mais semelhantes a si, excluindo, a todo custo, o maior número possível de outros indivíduos.
A teoria interpretativa de não-validade da regra de ouro para quem não seja judeu segue nesse barco, o barco da segregação, que conduz diretamente aos mais diversos tipos de preconceito, sentimento esse que já fomentou, por exemplo, as atrocidades cometidas pelos nazistas nos campos de concentração.
Então, eu pergunto: se é notoriamente perigoso e moralmente injustificável restringir nossa esfera de princípios éticos, por que insistimos em fazê-lo?
Se é perfeitamente possível e indolor estender esses princípios não só a todos seres humanos, mas também a todos seres que, como nós, possuem corpos físicos sensíveis e interesse de manutenção da própria integridade e existência autônoma (leia-se “os animais”), por que não fazê-lo?
Em vez de se questionarem sobre tais fatos, a maioria dos judeus prefere continuar em sua ignorância, acreditando que recusar carne de porco constitui o supra-sumo da abnegação e da santidade.
Eu, ao contrário, avalio que, ante tudo isso, só resta o caminho do veganismo.
ANDA: “Vegansexualismo” – que tal e por quê?
Rafael: Se a questão sexual estiver atrelada a um relacionamento que se pretenda duradouro, seja de que natureza for (casamento, namoro, amizade colorida), parece-me impossível que o veganismo não seja compartilhado por todos os envolvidos (e note-se aí que fiz questão de não restringir o número de envolvidos).
Isso porque o veganismo não é uma dessas questões que podem ser contornadas em um relacionamento intenso e diário, não é uma mera questão de gosto pessoal, não é equiparável a divergências entre os cônjuges na escolha do time de futebol, por exemplo; como eu já disse, o veganismo é uma forma de se posicionar no mundo nas mais diferentes frentes: política, filosófica, ética, moral, estética, gastronômica, sociológica.
Sendo assim, acaba havendo um verdadeiro abismo psicológico entre um vegano e um não-vegano, uma profunda ruptura que, na esmagadora maioria das vezes, inviabiliza a construção de um bom relacionamento.
Porém, em se tratando de sexo casual, não creio que o ser ou não ser vegano importe muito; aliás, nesses casos, na minha opinião, nem saber o nome importa (risos).
Entrevista concedida, com exclusividade, à repórter da ANDA, Rachel Siqueira
http://www.anda.jor.br/28/12/2009/o-veganismo-como-forma-de-se-posicionar-no-mundo
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